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terça-feira, 11 de março de 2014

Sob o signo do sexo (1959)



O cinema é o espelho da sociedade. Os valores pregados por ela estão em cada filme que assistimos, diretamente ou não. Talvez a percepção disso tenha me estragado como cinéfila. Não há filme que espelhe mais a sociedade dos anos 50 do que Sob o signo do sexo. Mas não se engane, pois você vai encontrar muitos ecos do que este filme preconiza nos dias de hoje. E é por isso que o escolhi, numa tentativa de mostrar que ainda pensamos como a sociedade dos anos 50 sob muitos aspectos. Sim, lá vem um post feminista.


The best of everything (Sob o signo do sexo nessas bandas) foi um dos filmes bafônicos do final dos anos 50. Depois de A caldeira do diabo, ninguém achava que poderia vir algo mais polêmico. Porém, a Twentieth Century Fox (mais precisamente o produtor Jerry Wald) provou que um personagem que era filho de um incesto não era NADA perto do rebuliço de The best of everything causou. O filme utilizava uma fórmula bem conhecida em Hollywood: três-amigas-na-cidade. Como a fórmula já era bastante batida (Joan Crawford, que participou de The best protagonizou dois dos grandes filmes conhecidos desse gênero em 1920 e lá vai cacetada) , algo precisava ser incrementado a ela. Então uma pitada de “realismo” foi aplicada ao filme. E que realismo seria esse?  O realismo de que estamos falando é o aborto, as relações extraconjugais, o sexismo, as mulheres no mercado de trabalho. Você pode me perguntar: mas isso já não existia? Já, mas não era abortado de forma tão explícita em um filme até então. O escritório de censura de Hollywood deixava passar esses assuntos, desde que fossem tratados de forma sutil. Em the The best of everything está tudo escancarado, tudo que Jerry Wald queria para garantir grandes bilheterias.

Falar sobre The best of everything sem falar sobre Jerry Wald seria heresia. Este simpático homem foi um dos produtores mais famosos de Hollywood, conhecido por seu trabalho com Joan Crawford na sua fase Warner Brothers (Almas em suplício e Acordes do coração). Reza a lenda que ele guardava pastas e pastas com recortes de jornais e afins, tudo que poderia ser tornar uma história futuramente. Mas como Wald chegou até The best? Assim que conheceu Rona Jaffe, a autora do romance que futuramente daria origem ao filme. Wald era conhecido por respeitar muito escritores, tinha Faulkner como amigo íntimo entre outras celebridades do mundo literário. Ele estava à procura de um novo Kitty Foyle, um filme em que as mulheres pudessem ter uma identificação imediata. Jaffe, que trabalhava em um escritório, disse a Jerry que escreveria uma história sobre suas colegas de trabalho. Porque, como ela mesma diz, conhecia essas mulheres. Assim, nasceu The best of everything, o primeiro livro comprado antes de ser publicado para ser filmado pela Fox. É claro que Jerry fiscalizava tudo, além de fazer publicidade falsa para o filme. Espalhou para a imprensa que Paul Newman iria protagonizá-lo. Tudo isso fez com que o livro ficasse durante semana na lista de bestsellers e com que o filme fosse ainda mais aguardado.

Já pela orelha do livro podemos ter noção do que vinha por aí: “Aqui estão as moças que não se casaram aos vinte. (...) São as garotas de hoje, que são atraídas por Nova York para fingir que têm uma carreira enquanto esperam por aquilo que realmente desejam: um marido e um lar”. Esse também é o mote do filme. E aí está a pegadinha de intitulá-lo de moderno; ele só reafirmava que a independência e carreira de uma mulher não eram nada sem o amor de um homem. Que não adiantava ter essas coisas, você ia sentir falta de algo, neste caso um lar e um marido. Muito parecido com mensagem das comédias protagonizadas por Doris Day. As cinco protagonistas – no fim das contas apenas três delas aparecem mais – são julgadas conforme os padrões de uma sociedade que divide as mulheres entre as que são “respeitáveis” e aquelas que “servem apenas para a diversão”. O tempo inteiro. Em The best of everything, temos estereótipos para dar e vender dessas mulheres:

  • Caroline Bender (Hope Lange): A mocinha, que depois de abandonada pelo noivo, mergulha no trabalho disposta a subir na carreira.
  • Gregg Adams (Suzy Parker): Aspirante à atriz, que tem um relacionamento doentio com seu diretor de teatro. Do tipo frívola, sensual, desmiolada, mas muito querida. Hollywood adora esse tipo, vide personagens de Marilyn Monroe.
  • April Morisson (Diane Baker): A mocinha ingênua do interior, que será usada e jogada fora por seu namorado, Dexter.

Caroline é a nova secretária da editora, que começa o filme afirmando com a maior convicção do mundo que seu único desejo é ser esposa e ter filhos. Ó, que mulher, essa é pra casar. Contudo, seu noivo a troca por outra durante uma viagem e as ilusões da personagem terminam. Para escapar da desilusão, ela mergulha fundo no seu próximo objetivo: se tornar uma editora tão influente quanto sua patroa, Amanda Farrow (Joan Crawford). É interessante notar como Amanda serve como um espelho para Caroline. A editora bãn bãn tem um caso com um homem casado, um dos donos da editora, que lhe enrola eternamente quando o assunto é casamento. Apesar de todo aquele poder, Amanda é frágil, e como toda mulher precisa de amor. Assim, ao receber a proposta de casamento de um velho amigo, ela decide sair da empresa e ir em direção ao amor. Porém, para nossa surpresa, a empreitada dá errado. Fiquei pensando nisso depois que vi o filme e cheguei a conclusão de que a volta de Amanda é uma forma de dizer a Caroline que, se ela demorar muito e ficar velha como Amanda, não vai mais dar certo. Basicamente não deu certo com ela porque a personagem é velha. Então Amanda decide ficar com sua carreira, afinal é a única coisa que deu certo em sua vida. Coitada, não tem o amor de um homem e um lar, veja bem.

Caroline Bender (Hope Lange).


Gregg Adams (Suzy Parker).
Já Gregg Adams é o oposto de Caroline: efusiva, consciente de seu poder feminino, uma vamp. E é claro que ela paga caro por isso no final do filme. Gregg acaba se envolvendo com seu diretor de teatro, David Savage (Louis Jourdan). Amanda lhe diz que ela deve correr que esse homem é cilada. Só que Gregg acaba se encantando com a ideia de ser sua nova estrela e com suas palavras também. Logo a relação começa a ficar tensa, pois ela não aceita ser trocada por outra e começa a controlar sua vida. Aliás, a atuação de Suzy Parker, que era modelo, é sensacional. Os produtores tinham medo de que ela não conseguisse dar conta da fase negra de sua personagem, o que felizmente não aconteceu. Gregg começa a vigiá-lo, remexer em seu lixo. Sua vida termina tragicamente quando ela sem querer cai da janela, em uma dessas vigias. Muito convencional, já que o filme não poderia sugerir que fora suicídio. Em muitos momentos tive a sensação de que havia uma tentativa de suavizar a culpa no cartório de David. Ele poderia ter várias mulheres, afinal era o que se espera de um homem. Gregg, coitadinha, não soube lidar com isso. Ela deveria conhecer mais o mundo, aí não terminaria como terminou. O filme parece querer passar essa mensagem de que isso “faz parte da natureza masculina”, você tem que saber lidar se quiser sobreviver. Vergonhoso.

 Por último, temos a personagem mais interessante do filme, April. Essa paga por ser ingênua. Repararam como TODAS personagens femininas nesse filme pagam por algo? Paga por ser ingênua, por ser ambiciosa, por amar demais, por ser velha. E sob esse aspecto nada mudou. Nós, mulheres, pagamos por tudo. Pagamos por existir. Não é surpreendente que um filme de 1959 seja tão próximo de nós, em 2014, neste aspecto? Ainda não paramos de policiar as mulheres e fazê-las pagar por absolutamente tudo que façam. Mas voltando à April. Ela veio de Connecticut, interior dos EUA, para ser secretária em N.Y. Lá pelas tantas, ela conhece Dexter Key (Robert Evans). Eles começam a sair e, conforme o protocolo, chega um momento em que a atração sexual entre eles é inevitável. April não quer transar com o moço, só depois de casar. Representando muito bem a moça decente, essa é pra casar feelings. Só que Dex acaba a convencendo, e eles transam. Aí vocês imaginam o que acontece. O cara só queria uma transa, dá o fora, quebrando o coração de April. Para a desgraça ser completa, ela fica grávida. Ele a leva para se casar, só que na verdade está levando-a para abortar em uma clínica. Aliás, a palavra “abortar” não é dita nenhuma vez, sendo subtituída por “operação”. Imaginem o choque das pessoas assistindo isso no cinema em 1959. Em outra operação, a do bate e assopra, April acaba perdendo a criança espontaneamente após o carro fazer uma curva brusca e jogá-la para fora. Vamos mostrar o aborto, ok, as pessoas já estão bem chocadas. Para não chocar mais vamos fazê-la perder sem ir à clínica. Hoje o mito de que a mulher deve reservar seu corpo ao cara que é decente e quer algo sério com ela continua. Muitas mulheres são criadas para serem April Morisson. Quando acontece uma situação parecida, elas se sentem culpadas. Como se tivessem sido usadas. Parece que o corpo de uma mulher sempre está sendo vigiado; ela não pode fazer o que bem entender com ele. Depois de realizar o aborto, ela coloca as mãos no rosto e diz: “Estou tão envergonhada! Agora não passo de uma mulher que teve um caso”. Mais uma vez, senhores, a eterna divisão entre mulheres respeitáveis e que tiveram um caso. Por que enxergar isso em 2014 não me surpreende mais?

Não falar sobre o personagem Fred Shalimar (Brian Aherne) seria uma heresia. Ele é um dos grandes da editora, talvez o personagem masculino que mereça maior destaque. E não é porque ele faz coisas boas no filme, não. Na verdade, Shalimar é um representante do que há de mais sexista dentro da sociedade. O que há de mais podre para ser mais específica. Ele é o passado, presente e futuro. Por quê? Para começar, ele pratica assédio sexual com suas funcionárias. Mas não é só isso. Ele não se contenta em agredi-las verbalmente; ele também as apalpa descaradamente. Várias vezes. Várias. E tudo bem. Está tudo bem. É normal. É a natureza masculina. Não é a primeira vez que um homem aparece fazendo esse tipo de coisa, basta lembrar que em 1933, no filme Grande Hotel, Joan Crawford foi apalpada por John Barrymore. E todas essas cenas em tom de brincadeira. Shalimar é um representante do macho alfa da nossa sociedade. Ele é grandão, assedia as funcionárias, mostra sua virilidade. E para coroar tudo isso, ainda há o diálogo entre ele e Amanda Farrow:

"É claro que continuo apalpando todas as garotas". "Você não achou que eu estava interessado na inteligência delas, né?"

 Pois é.

Mudando de saco para mala, ainda há um último ponto a ser tratado se você ainda está aguentando ler esse post: Joan Crawford. Você não achou que eu me esqueceria dela, não? The best of everthing foi o primeiro filme em que Miss Crawford atuou como coadjuvante. Depois da morte de seu marido e presidente da Pepsi Cola, Alfred Steele, a atriz estava bastante deprimida, o que motivou Jerry Wald a chamá-la para o filme. O pessoal do filme sabia que se alguém dissesse que esse era um papel menor, Joan jamais aceitaria. Por isso, Wald inventou uma estratégia, escreveu uma cena fictícia para ela, que lembrava muito sua personagem Helen Wright em Acordes do coração. Crawford veio correndo. Segundo o livro Os bastidores de Hollywood na Vanity Fair, Joan estava bebendo cada vez mais. Alguns relatam que ela chegara bêbada no set, e que um dia, ela teria sido vista calçando sandálias diferentes; azul em um pé, branca no outro. No fim das contas, Joan provou que não importasse se o papel menor; ela arrasava do mesmo jeito. Amanda Farrow tem a língua afiada e rende os melhores diálogos do filme. A tensão entre Hope Lange e Joan na vida real ajudou na realização das cenas, pois as personagens das duas viviam em um eterno clima de ironia e troca de farpas. Ná epoca, algumas pessoas se apavoraram como Crawford estava “velha”. Na série de televisão, Mad Men, existe um diálogo em que os personagens comentam que nào acreditavam que uma musa do cinema estivesse tão velha. Joan pagando o preço de se arriscar no cinema, pela segunda vez em cores. Acho que ninguém sofreu mais com esses comentários do que a própria Joan. Se o mundo era um lugar cruel, Hollywood era dez vezes pior.

Jaffe classifica seu livro como “um romance sociológico”, simplesmente escrevendo sobre aquilo que acontecia na puritana sociedade e ninguém tinha coragem de admitir. Apesar de sua coragem, não podemos esquecer que Jaffe estava reproduzindo os valores do patriarcado, de que a mulher queria amor, marido e filhos. Só isso. Carreira pra que então? Por isso, decidi escrever sobre The best of everything. É a forma que encontrei de mostrar que queremos muito mais que flores e chocolates no dia oito de março. Queremos respeito. Não queremos ser assediadas por nossos chefes, nem por ninguém. Queremos poder dizer a April que ela é muito mais que uma mulher que teve um caso. Que ter casos não define caráter. Que não sejamos reduzidas a ter um marido e um lar. Quem quiser ter que tenha. Mas quem não quiser que seja respeitado por isso. Queremos ser, só isso.

Feliz dia internacional da mulher.


Publicado por Jessica Bandeira.

Um comentário:

  1. Querida, como já te disse, me arrepiei ao ler esse teu texto. Uma forma bastante original pra falar sobre o oito de março e o feminismo. Incrível que o filme/livro aborda exatamente TUDO o que ainda presenciamos hoje na sociedade patriarcal de 2014. Isso é um absurdo tão gigante que o ódio aumenta a cada dia que passamos no convívio desse machismo. Linda a tua análise, lindo teu texto e é adorável teu gosto pelo cinema! E sigamos na luta feminista!!

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