Image Map

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Até a vista, querida (1944)


Philip Marlowe e Helen Grayle.

Por que as histórias de crimes nos fascinam tanto? Por que, mais de 50 anos depois, os filmes noir continuam nos encantando e sendo objeto de estudo? Simples: eles contam muito mais o que mostram. É possível ler e reler os filmes noir (e seus livros também) de diferentes formas. Podem ser lidos como um retrato da época em que foram lançados, como uma narrativa de nossos tempos atuais. Recentemente fiz um trabalho para faculdade em que comparava Crime e Castigo de Dostoiévski justamente com Adeus, minha adorada, romance que deu origem ao filme. Mas isso é assunto para outro post. O fato é que o filme noir nunca cansa de nos fascinar, embora sua fórmula quase sempre seja a mesma.

O que nos faz assistir a esses filmes, então, se já sabemos mais ou menos como funciona?

Porque os arquétipos do noir nunca nos cansam, é por isso. E por mais que “saibamos” como funciona, a história sempre nos surpreende. É o que acontece em Até a vista, querida. A farinha, a liga, digamos assim, do noir está ali. Temos a femme fatale, o detetive durão mas no fundo de coração mole, o senso de desorientação. Tudo isso sedimentado em um romance de Raymond Chandler, um autor cujo Hollywood bebeu até a última gota. Ela se aproveitaria dessa fonte criativa que é Chandler adaptando romances como O sono eterno (The big sleep) para o cinema, imortalizando o detetive Philip Marlowe como Humphrey Bogart, dois anos depois de Até a vista, querida. A fonte era lucrativa e o Marlowe de Raymond gozava de popularidade entre o público americano.


Até a vista, querida (Murder, my sweet) começa com um falatório de homens sobre um assassinato. “Olha, Marlowe, estamos lhe acusando” – diz um deles. A câmera foca no teto, na lâmpada, que quase nos cega, e lentamente vai se abaixando. Vemos os tais homens que estavam falando e um outro com uma venda nos olhos: Marlowe (Dick Powell). Geralmente os filmes noir nos fornecem pistas que vão nos ajudando a construir o enredo. Essa é uma delas. Uma meia-pista porque nos perguntamos: do que ele está sendo acusado? De que garota ele está falando? Murder, my sweet trabalha, como quase todos os filmes noir, para desorientar o leitor. Para que ele se sinta inseguro e não saiba o que vai acontecer. Para que em um determinado momento ele diga: “Como assim isso está acontecendo?”




Logo em seguida entra a voz-off de Marlowe, que introduz o flashback para contar o que o levou estar ali com os olhos vendados. Aqui temos outra característica do noir. A narração em primeira pessoa era um artifício bastante utilizado na ficção hard-boiled (movimento literário americano dos anos 20 de onde surgiu o filme e o romance noir) para causar uma empatia no leitor, para que ele se identificasse com o protagonista. “Desta forma o espectador podia experimentar de uma forma mais íntima a raiva do personagem”, segundo o livro Film Noir da editora Taschen. Assim, experimentamos todas as sensações de Marlowe.

A sensação que você experimenta assistindo a qualquer noir é a de confusão. Às vezes você precisa reassistir o filme para entender a geniosa trama, as viradas, uma vez não basta. É o caso de Murder, my sweet. Quando Philip começa a contar sua história, somos apresentados a Moose Malloy (Mike Makurki), basicamente uma porta de tão grande e que vai procurar o detetive por causa do desaparecimento de sua Velma Valento. Aliás, abrindo um parênteses, a cena desse primeiro encontro dos dois é genial. Philip está em seu escritório, um lugar escuro e apertado, virado para a janela. Quando ele olha para ela de novo, vemos o reflexo de Moose refletido no vidro. Que medo! O personagem tem uma cara ameaçadora, você já pensa: “Aí vem encrenca”. Aparentemente Moose só quer sua Velma de volta. E nós acreditamos nisso piamente, assim como Marlowe. Só que, de repente, mais para frente, um homem liga para Marlowe pedindo ajuda para recuperar algumas joias roubadas. Queria que o detetive o acompanhasse. Como estava precisando de dinheiro, o detetive aceita. Chegando no lugar combinado, uma série de reveses acontece e a cena termina com Marlowe levando uma coronhada na nuca. Como assim? O que está acontecendo? Raymond Chandler trabalha com duas histórias diferentes que têm um ponto comum. No entanto, no momento em que estamos vendo o filme nada parece fazer sentido com nada. Voilà, essa é a sensação de confusão que é despertada em nós.

Essa sensação de confusão atinge o ápice na melhor cena do filme: a do sonho. Philip se mete em diversas confusões até que leva uma porrada de arma no rosto e apaga. A câmera vai “comendo” a imagem e escurendo.  O abismo negro voltou a se abrir sob meus pés e senti que estava afundando. A câmera se move imitando uma cabeça girando e vendo as coisas turvas. Philip começa a alucinar num sonho que mais parece saído da série de televisão Além da imaginação do que qualquer outra coisa. Ele despenca de uma porta flutuante e cai em um abismo em fim. Vê a imagem gigante de Moose refletida em um espelho perguntando onde está Velma. O sonho lembra bastante o que Hitchcock fez depois em Um corpo que cai, uma das melhores cenas que já vi. Depois que Philip desperta, a lente da câmera está embaçada, que mostra como o personagem via as coisas ao seu redor depois de ter sido sedado.

A cena da alucinação de Philip Marlowe.

Já discuti este ponto em outros posts (De repente num domingo e Pacto de Sangue), mas acho que vale a pena voltar nele: “o mundo noir é sobretudo um mundo de sonho”. É o absurdo. A vidinha de Philip está tediosa, então Moose aparece e quer sua Velma de volta, dali a pouco ele leva uma coronhada na nuca e se vê envolvido no caso de um roubo de joias. Tudo isso em questão de minutos. Segundo Film Noir da Taschen: “Está repleto de estranhos sincronismos, acontecimentos inexplicáveis e encontros do acaso, que criam uma corrente de acontecimentos que por fim arrastam o o infeliz protagonista para o seu fim pressagiado”.

A femme-fatale de Murder, my sweet ficou sob a responsabilidade de Claire Trevor, que interpreta a misteriosa Helen Grayle. Não falarei muito sobre ela por causa dos spoilers, porém gostaria de comentar a cena em que ela aparece pela primeira vez. Ela está sentada na sala, com as pernas cruzadas, no momento em que Marlowe chega e é apresentado a ela. O detetive fica hipnotizado pela beleza da mulher, mas principalmente por suas pernas. Trata-se de uma cena incrível, em que a tensão sexual se define pela maneira como Helen mexe as pernas para provocar Marlowe. Sua mexida de pernas é semelhante ao efeito que a tornozeleira de Phyllis Dietrichson provoca em Walter Neff em Pacto de Sangue.


Com um final surpreendente, grandes viradas e um protagonista irônico e carismático, Murder, my sweet é um noir cinco estrelas. Dick Powell está sensacional no papel de Philip Marlowe, não perdendo nada para seu sucessor, Humphrey Bogard. Para os que ficaram curiosos sobre o livro adianto: é muito bom. Funciona de maneira diferente do filme, mas ainda sim vale a leitura. Não há como ficar indiferente a esse mundo tão sedutor que é o filme noir.

Curiosidades:
  • Quando a futura esposa de Dick Powell, June Allyson, leu o script de Murder, my sweet, ela o adorou. Contudo, quando Dick lhe perguntou se achava que ele era o ator ideal para o papel, ela disse que ele seria motivo de piada se interpretasse esse papel.
  • A produção estava tão louca no dia das gravações da primeira cena de Claire Trevor que esqueceram de chamar a maquiadora. Trevor teve que maquiar as pernas sozinha.
Publicado por Jessica Bandeira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário